A responsabilidade civil do Estado é assunto de grande repercussão no meio social, disso não há dúvida. Discussões e mais discussões são iniciadas quando um ato praticado por agente público causa prejuízos ao particular; indaga-se: de quem é a culpa pelo evento? A Administração pública deve indenizar? O particular suportará o prejuízo sozinho?
Tema de grande valia para os operadores do direito, é objeto de debates acalorados na doutrina e jurisprudência, afinal, quem nunca se viu preso em uma discussão pertinente ao “dever do Estado de indenizar”.
Em atenção à realidade do país, e, sobretudo, das cidades sulmatogrossenses, que ainda sofrem com problemas de infraestrutura urbanos, máxime ligados à pavimentação das vias públicas, foi escolhido o tema central do artigo, que tem por escopo abordar importantes aspectos inerentes à Responsabilidade Civil do Estado nos acidentes causados em razão de “buracos” nas vias públicas.
Diferente do que ocorre com a responsabilidade civil de natureza contratual, decorrente dos contratos e ajustes firmados pela Administração pública, a responsabilidade civil extracontratual tem suas raízes voltadas à responsabilização do ente público pelos danos causados por seus agentes, no exercício da função, em face de particulares.
É válido realçar que o Estado, enquanto instituição organizada, constituída de governo, povo e território, tem a finalidade precípua de garantir o bem comum a toda coletividade. Para tanto, conta com prerrogativas (privilégios) e sujeições (limitações), o chamado Regime Jurídico Administrativo.
A supremacia do interesse público sobre o privado é indubitavelmente a maior das prerrogativas conferidas à Administração Pública. Dela advém a ideia de que o administrador público deve agir em prol do interesse da coletividade, ainda que para isso tenha que antepor interesses particulares. Exemplo disso ocorre quando um ente público promove a desapropriação de um prédio comercial para construir uma escola no local; é um típico caso em que o interesse da coletividade prepondera sobre o proveito particular.
Como tudo na vida – e não seria diferente no Direito, que consiste no conjunto de normas que a regulam –, as prerrogativas do Estado, ao mesmo tempo em que garantem ao gestor público uma série de vantagens, incitam enorme responsabilidade à Administração Pública e às pessoas que atuam em seu nome.
Tal como orienta José dos Santos Carvalho Filho:
“passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior”.
E, partindo desse pressuposto, depois de um longo processo histórico, convencionou-se que a responsabilidade civil do Estado, à luz do art. 37, § 6 º, da Constituição Federal, possui natureza objetiva, respondendo independentemente de culpa pelos atos ilícitos praticados por seus agentes no exercício da função administrativa.
Nessa linha de raciocínio, a festejada jurista Maria Sylvia Zanella de Pietro leciona:
“podemos assentar que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos”.
O Brasil adotou, como regra, a Teoria do Risco Administrativo, segundo a qual, o dever do Estado de indenizar possui natureza objetiva, bastando que a vítima demonstre o nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o dano por ele causado. Aqui não há espaço para discutir se o indivíduo agiu com dolo ou culpa ao gerar o ilícito, pois estando presentes os pressupostos (conduta, dano e nexo de causalidade), subsiste o dever do Estado de indenizar o particular prejudicado.
Em tais hipóteses, resta ao Estado o ônus de provar a inexistência do nexo de causalidade, via de regra consubstanciada pela culpa exclusiva da vítima e por casos fortuitos ou de força maior. Se assim não for, deverá indenizar o particular, e, depois, buscar o ressarcimento do prejuízo junto ao agente público que causou o dano, por intermédio de ação regressiva a ser proposta em sintonia às normas processuais civis.
A explanação supra diz respeito à responsabilidade civil do Estado por atos comissivos de seus agentes, os quais exigem uma postura ativa do servidor (um “fazer”). Cite-se o ilustrativo caso de um funcionário público que, exercendo a função de motorista, atropela transeunte enquanto atravessa avenida de grande circulação de veículos na faixa de pedestres, ocasionando-lhe danos físicos de grande monta. Do exemplo narrado, é possível extrair o ato comissivo do agente, o dano, o nexo de causalidade, e, por conseguinte, o dever do Estado de indenizar a vítima do sinistro.
De outro giro, há, também, a responsabilidade civil decorrente da omissão do Estado, cujo “fato gerador” é a inércia estatal, representada pelo “não fazer” do agente público, que resulta danos materiais ou morais ao particular.
No viés oposto da responsabilidade civil por atos comissivos, cuja natureza é objetiva (não se discute culpa!), a modalidade em apreço (decorrente da omissão) se orienta pela Teoria da Responsabilidade Subjetiva, conceituada de forma precisa no magistério de Matheus Carvalho, in verbis:
“A Responsabilidade Subjetiva aplicável, neste caso, não é aquela apresentada ou defendida pela da teoria civilista, ou seja, não depende da demonstração de dolo ou culpa do agente público, mas sim da responsabilização decorrente da Culpa Anônima. Relembre-se que tal teoria entende que a má prestação do• serviço ou a prestação• ineficiente geraria a responsabilidade subjetiva do estado. Nesse caso, para fins de responsabilização do ente público, não se precisa comprovar a culpa do agente, bastando a comprovação da má prestação de serviço ou da prestação ineficiente do serviço ou, ainda, da prestação atrasada do serviço como ensejadora do dano”.
Ressalte-se que a responsabilidade civil pela inércia do Estado exige a demonstração de culpa, que não consiste na existência de imprudência, negligência ou imperícia, e sim na falha da prestação do serviço público, compreendida pelo termo “Culpa Anônima” ou “Faute de Service”, um vocábulo importado de terras francesas.
Seja qual for a nomenclatura adotada para se referir ao principal pressuposto da responsabilidade civil pela omissão, certo é que, uma vez comprovado o fato ou vício no serviço prestado pelo Estado, aliado aos demais pressupostos – conduta, dano e nexo de causalidade –, subsiste o dever de indenizar.
Por esse prisma, “A jurisprudência, tanto a do STF como a do STJ, é firme no sentido de que se aplica a teoria da responsabilidade subjetiva nos casos de ato omissivo estatal. (STJ, AgRg no AREsp 243.494/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 19/02/2013)”.
Com efeito, o tema objeto deste trabalho está intimamente relacionado a essa modalidade de responsabilidade (por omissão), porquanto os “buracos” tão presentes nas vias públicas não são resultado de uma postura ativa do agente público – o servidor não escavou a via, com o fim de criar uma cratera! –, e sim da inércia do Estado, quer realizando um trabalho eficiente de pavimentação das ruas e avenidas de uma cidade, quer “tapando” os buracos de forma célere, tão logo surjam em decorrência de eventos naturais ou do corriqueiro desgaste das vias.
Em termos práticos, a questão dos “buracos” deve ser vista sobre o enfoque da falha na prestação do serviço. É bem verdade que a pavimentação das ruas e avenidas de uma cidade sofre depreciação natural pelos efeitos do uso, haja vista que o tráfego de veículos, muitos deles com excesso de peso, resultam desgaste até mesmo prematuro nos locais de maior circulação.
Tal situação, no entanto, não exonera o Estado do dever de indenizar, pois é cediço que a Administração Pública tem a incumbência de manter os logradouros públicos em condições adequadas, a fim de que sejam utilizados por todos os munícipes. Logo, eventual vício na pavimentação das ruas, responsável por ocasionar acidentes, constitui ato ilícito por omissão, passível de ensejar a indenização em favor do particular prejudicado.
A propósito, em situação análoga, em que o condutor de uma motocicleta caiu bruscamente ao solo ao tentar desviar de buraco situado na via pública, o Tribunal de Justiça deste Estado, em julgado recente, manteve a condenação do Município ao pagamento da indenização pelos danos materiais, por entender configurada a responsabilidade subjetiva do ente público. Vejamos:
EMENTA – INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTE PÚBLICO – QUEDA DE MOTOCICLETA AO DESVIAR DE BURACO NA VIA PÚBLICA – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – DANOS DE ORDEM MATERIAL – DANOS MORAIS INDEVIDOS – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Em se tratando de omissão, a responsabilidade civil de pessoa jurídica de direito público, tanto a doutrina como a jurisprudência majoritária entendem que é subjetiva, devendo, portanto, ser demonstrada a ocorrência de uma das modalidades da culpa: negligência, imperícia ou imprudência. Trata-se de doutrina baseada no que os franceses chamaram de faute du service (falta do serviço).
2. Incumbe ao Município a manutenção e conservação das vias públicas, devendo tomar todas as cautelas necessárias a fim de impedir que os munícipes sofram acidentes em decorrência de sua má conservação A inobservância deste dever, comprometendo a segurança, gera o dever de indenizar os danos materiais.
3. Não restando demonstrado o dano moral, não há se falar na sua indenização.
(TJMS, Apelação Cível 0801321-38.2013.8.12.0045, Sidrolândia, Des. Rel. Sideni Soncini Pimentel, 5ª Câmara Cível, julgado em 10/11/2015).
E, nesse mesmo contexto, urge destacar o posicionamento dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo e Distrito Federal e Territórios, uníssonos ao imputar ao Estado a responsabilidade pelos eventos danosos causados pela má prestação do serviço público no que tange à pavimentação e conservação das vias públicas:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - BURACO EM VIA PÚBLICA - OMISSÃO - RESPONSABILIDADE SUBJETIVA - DANOS MATERIAIS COMPROVADOS - DANO MORAL - CONFIGURAÇÃO - PRIMEIRA APELAÇÃO PROVIDA E SEGUNDA APELAÇÃO NÃO PROVIDA. 1. A conduta omissiva do Município enseja a responsabilização subjetiva, sendo necessária a comprovação da culpa, do dano e do nexo de causalidade. 2. É dever do Município manter os logradouros públicos em condições que assegurem a sua regular utilização por todos. 3. É cabível a responsabilização do Município pelos danos materiais causados em decorrência de queda do autor em buraco, quando trafegava em sua motocicleta, uma vez comprovado que o ente municipal não manteve a via pública em condições seguras. 4. O Município deve responder pelos danos morais, tendo o autor sofrido fratura na costela, em razão do acidente. 5. Configurado o dano moral, cabe ao magistrado arbitrar um valor capaz de propiciar a necessária compensação satisfativa ao dano, nos limites da proporcionalidade e da razoabilidade, para que não sirva de fonte de enriquecimento sem causa. 6. Primeira apelação provida. 7. Segunda apelação não provida. (TJMG - Apelação Cível 1.0702.12.053708-0/001, Rel. Des. Raimundo Messias Júnior, 2ª Câmara Cível, julgado em 06/10/2015).
REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. BURACO NO MEIO DA PISTA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CONDUTA OMISSIVA. FISCALIZAÇÃO E MANUTENÇÃO DO SISTEMA VIÁRIO. DANOS MATERIAIS. COMPROVAÇÃO. DANOS MORAIS. CONFIGURAÇÃO.
[...]
4. A reparação de danos decorrentes de conduta omissiva praticada pelo Estado cuida de hipótese excepcional de responsabilidade subjetiva, fundada na teoria da faute du service, encontrando-se, portanto, sujeita à comprovação de culpa na falha do serviço prestado e do nexo de causalidade entre esta e o evento lesivo.
5. Tem-se configurada a responsabilidade civil do Estado quando o dano experimentado pelo motociclista tem origem em ato omissivo do ente estatal, consistente em não reparar grande buraco no centro da pista de rolamento, tampouco providenciar a devida sinalização no local, como forma de garantir aos usuários condições adequadas de uso e segurança do sistema viário local.
6. Demonstrado que o evento que culminou com sequelas na mão esquerda do autor, comprometendo o exercício de sua atividade laborativa, torna-se devida a indenização pelos danos materiais e morais sofridos.
(TJDFT, Acórdão 896457, 20130111162569APO, Des. Rel. Simone Lucindo, 1ª Turma Cível, julgado em 16/09/2015).
APELAÇÃO – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS – ACIDENTE DE TRÂNSITO – ALEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE BUEIRO INAPROPRIADO E BURACO NO ASFALTO – MÁ CONSERVAÇÃO DA VIA PÚBLICA – LEGITIMIDADE PASSIVA DA MUNICIPALIDADE RECONHECIDA – RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA PELOS ESTRAGOS VERIFICADOS NO PNEU DO AUTOMÓVEL DO AUTOR, A TEOR DO ART. 37, § 6º, DA CF – DANOS MATERIAIS DEVIDAMENTE COMPROVADOS – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP, Apelação Cível 1004380-2014.8.26.0114, Rel. Des. Cesar Luiz de Almeida; 28ª Câmara de Direito Privado; julgado em 10/11/2015).
Conclui-se, então, que diante da inércia do Estado em manter as vias públicas em condições adequadas ao uso por pedestres e motoristas de veículos automotores, sobressai o dever de indenizar, seja materialmente (abrangendo o dano emergente e os lucros cessantes, conforme art. 402 e seguintes do Código Civil), seja moralmente, se comprovado o gravame aos direitos da personalidade do administrado.
Entrementes, não se descuidando do rigor técnico e da premissa de que o direito não permite conclusões aritméticas, é preciso frisar que o dever de reparação estatal, pautado na Teoria da Reponsabilidade Subjetiva ou do “Faute de Service”, não se estende àquelas situações em que, por ensejo de fenômenos naturais (chuvas, enchentes, ventos fortes e etc.), há desgaste prematuro das vias públicas, e, por falta de tempo hábil para solucioná-lo ou até mesmo sinalizá-lo para evitar possíveis acidentes, o particular sofre danos materiais.
Nesses casos, o bom senso do julgador deve imperar, de modo que o posicionamento mais acertado consiste em afastar o nexo de causalidade entre o dano e a conduta supostamente omissiva do Estado, visto que em tais situações, o superveniente estado precário das ruas e avenidas foge do controle da Administração Pública, não se admitindo falar em falha na prestação do serviço se este é prejudicado por fatores externos, naturais, alheios à ingerência estatal.
Obviamente, essa situação de exoneração do dever de indenizar não deve ser estendida aos casos de inércia do ente público, constatada quando embora diante de inúmeros danos na pavimentação asfáltica – inclusive causados por fenômenos naturais – permanece inerte por mais tempo que o necessário para retificação, dando azo, assim, a uma série de acidentes, responsáveis por gerar danos materiais e morais aos cidadãos.
Em suma, é indiscutível o dever do Estado de manter em perfeitas condições de uso as vias públicas, visando preservar a segurança dos pedestres e motoristas. Portanto, faz nascer o dever de indenizar as falhas e/ou defeitos na prestação do serviço de pavimentação e conservação das vias, de tal sorte que, no caso de desgastes provocados por fenômenos naturais, em não havendo atuação diligente e célere da Administração Pública, tomando por base critérios de razoabilidade e bom senso, resta de igual modo configurada a inércia estatal, e, por conseguinte, a Culpa Anônima, ensejadora de responsabilidade civil.
Com essas considerações, espera-se que o leitor tenha compreendido as nuances mais relevantes do tema “Responsabilidade Civil do Estado”, especialmente relacionadas aos atos omissivos da Administração Pública no que diz respeito ao estado de conservação das vias públicas, cujo cenário é lastimável em grande parte do país.